quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Amendoin, aipim e frio (por Richard Brunel Matias)

Hoje aqui no Blog, uma crônica do meu irmão! Meu inspirador.... quem me ensinou muitas coisas!

Amendoin, aipim e frio

Quando chegava o inverno tudo era difícil. As férias eram curtas, o frio era gélido e penetrante. Na verdade era uma geladeira aberta, congelando as gordas pernas, sentado no portão de eucaliptos envelhecidos que minha nona mandara fazer para impedir a passagem das vacas do Seu Dequinha. 

No meu tempo de menino, eu morava no entremeio da vida urbana e rural, mas mais rural que urbana. Cresci numa casa humilde, madeira, sem pintura. O pretume das paredes atormentava os adultos, eu não o percebi até não ter chegado à adolescência. As tábuas do assoalho eram barras de cristais reluzentes. Mamãe gastava um bocado de cera e de pano de lã para deixá-las assim. As gretas eram cobertas por milhões de tapetes, que muitas vezes eram usados para brincar de escorregador. Eu adorava fazer bagunça, puxando minha irmãzinha de um lado para o outro, gritando, desarrumando tudo, batendo aqui e ali.

Na sala de visita, apenas três sofás velhos, antigos, vermelhos, forrados com uma espécie de plástico daqueles que hoje não se vê mais. No centro um tapete redondo, parecia um arco-íris, coloridíssimo. As paredes peladas, apenas um quadro do Papa, outro da basílica da Aparecida do Norte e um com uma casa ao lado de um rio, o repetido. Nada mais. Proteção contra o frio? Nenhuma, além das cobertas enroladas pelo corpo. Mesmo assim, eu passava horas e horas deitado no chão, inventando cidades com os poucos carrinhos que tinha, todos quebrados, pois não duravam muito em minhas mãos. Mamãe dizia:
- Tá na hora de ir pra cama - voz dura e decidida, não esmorecia. No outro dia, ela, de madrugada, tinha de se levantar para ir dar aulas e nós ficávamos com a nona, a polaca que nos criou e que nos ensinou tantas severidades que ainda levamos ainda hoje em nossa forma de ser. Falo nós, porque éramos dois, eu e minha irmã mais nova um pouco, a Tatá, como a minha outra avó, a italiana, gostava de chamá-la.
Mas o certo era que passamos a maior parte de nossa infância com a nona polaca, a Dona Joana, como todos a conheciam no bairro. Uma senhora forte, vigorosa, trabalhadeira. Criada na pobreza, na dureza da vida cheia de privações, na dor de um marido que gostava de apaziguar as mágoas num dos líquidos mais apreciados desse nosso país, a cachaça, minha nona Joana nos ensinou a severidade e o compromisso, o trabalho, desde cedo.
Plantava para subsistir e levar a vida adiante. Pude estudar em colégio particular porque ela pagava a mensalidade com aipim, pão de casa, doce caseiro e outras guloseimas da roça, até mesmo uma panela de milho verde cozido. Mas não só levava tudo isso em sacos daqueles da roça para o colégio Michel, onde eu estudei e fiz o ensino fundamental, eu também aprendi a plantar, a cuidar e a colher.
Plantávamos no final da primavera e colhíamos no outono e, muitas vezes, entrando o inverno. Durante o inverno tínhamos de manter a roça limpa, não deixar o mato avançar, ou melhor, a mata. Era costume de minha nona Joana pedir um pedaço de terra emprestado e nele plantar.
Uma vez ela conseguiu um pedaço enorme de terra lá atrás da casa da cabeleireira do bairro. O dono, que não sei quem é até hoje, sempre quando os lotes se mantivessem limpos, não cobrava nada de minha nona. Ela pagava o Seu Dequinha para derrubar a mata e tirar a lenha, com carroça e cavalos e depois entrávamos em ação. Era um tal de cortar cepo, capinar, roçar, carregar, queimar… e tudo tinha de estar prontinho para quando a primavera chegasse, por isso, trabalhávamos no inverno.
Nesse pedaço de terra a nona decidiu que plantaria amendoim e aipim. Primeiro amendoim e, entre as fileiras desse, o aipim. Cultivo híbrido era uma constante na vida dela. Plantava uma fileira de feijão e outra de milho, e colhia. A colheita era o mais importante, pois dela dependíamos, e muito, para comer. Aipim se comia quase sempre, pois sempre havia uma roça de mandioca. Amendoim era apenas uma vez por ano.
Eu estava sentindo muito frio. Estava sentado em cima das varas de eucalipto do portão, como já disse. Usava um poncho verde de lã. Acho que usei até gastar mesmo. Uma calça comprida de um material que não sei dizer como era, era dura, parecia de plástico, era sintética. Tinha furos das brasas que salpicaram ao ter-me aproximado demais da boca do fogão a lenha. Eu sempre estava buscando o perigo. Um a camiseta toda encardida e de sandálias de dedo. Isso mesmo. A gente andava de sandália de dedo pra lá e pra cá. Muitas  vezes descalço, pois a sandália arrebentava e já não dava para arrumar com um preguinho.
Mas aquela manhã marcou a minha vida pueril. Eu não queria trabalhar e a nona só queria era arrancar pé de amendoim, ainda molhado, entupido de orvalho quase congelado, colocar no carrinho-de-mão, que era mais pesado que a carga, pois era feito em casa e com madeiras muito pesadas. Ela não tinha dó, ralhava e tínhamos de descer do portão e cair na roça. Eram quatro terrenos numa ribanceira, escondido no meio de árvores enormes que durante a manhã só davam sombra ao roçado. Isso aumentava o frio. A lida durava horas, a manhã inteira. Era um vai-e-vem danado para arrancar, sacudir os pés de amendoim para não levar terra pra casa, enche o carrinho de mão até a soca, descer o morro do boi, descarregar tudo, voltar a subir o morro e começar tudo de novo. Se não fizesse, a vara comia.
Nossa recompensa!!!! Um panelão cheio de amendoim verde cozido. Um manjar dos deuses. Ainda hoje sinto o cheiro da terra, o frio do orvalho quase nevado, o vapor saindo das narinas, sinto a cor verde fluorescente da minha calça sintética combinando com o verde abacate do meu poncho com listrinhas amarelas e vermnelhas no final e uma franja de fios de lã. Sinto o gosto dos amendoins explodindo em minhas papilas, misturado a sabor de terra, mato e de vida na roça. Mas o melhor de tudo, sinto que crescia cada dia um pouquinho com minha nona Joana.

(......)

Richard Brunel Matias



PS: O TAPETE COLORIDO QUE PARECIA UM ARCO-ÍRIS EU COLOQUEI FOGO EM UMA BRINCADEIRA DE COZINHADINHO COM MEUS AMIGUINHOS... TENTEI ESCONDER DA MÃE, MAS NÃO DEU E APANHEI UM POUQUINHO POR ISSO

Ps2: (Xuxa não sou traumatizada por que apanhei tá)

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